Nas horas claras me disfarço
um operário em causa alheia
escorre na ampulheta a areia
do tempo que desfaz escasso
e no escuro das horas, farto
talvez as melhores do dia
me deito no cansaço
me reconstruo na poesia
Quem construiu o mundo?
A minha imaginação
Quando eu deixar de existir
muitas coisas também deixarão
As mudanças que ocorreram
foram frutos da minha criação
e continuarão mudando
a cada nova geração
Entre o sol e a lua
a tudo dou uma razão
Quando isso vai acabar?
Quando o último ser parar
de respirar e deixar de viver
Carrego sobre os ombros
a dor que me pesa
isso todo mundo faz
De rir sou capaz
mas logo se encerra:
a alegria nunca pesa
esse lugar imaginário
chamado coração
que bate, às vezes erra
pula pela garganta
ou desce até o porão
entre o amor e o ódio
alguma dor carrega
pulsa no peito
desanda, emperra
conserta
e segue batendo
com maestria
por mais uma breve
alegria
Tempos frios
apático clima
me sobra saudades
me falta poesia
Na memória do corpo
gozos e temores
alternam-se as drogas
ficam velhas dores
O prazer é fugaz
mas resta a lembrança
Na carne, a cobrança
que o tempo nos trás
Ter convicção não é ter razão
pior: convictos dizem não à razão
O mito da caverna, aquele do Platão
nunca fez tanto sentido
tempos cegos, mais bocas que ouvidos
Enquanto o sábio cresce na dúvida
o convicto reduz o mundo na certeza
lhe falta clareza, lhe sobra ilusão
burro que acredita ser cavalo alazão
Isso é um tipo de “arrogância à brasileira”:
aquele que não sabe nada, mas tem opinião
“Saber” é um detalhe irrelevante, bobeira
o que “eu acho” é o que tem exatidão
Nessa realidade que parece ficção
tempos onde a ignorância é qualidade
vivemos essa porcaria de situação
um eterno atraso de sociedade
Boçal, o presidente
hiena histérica, grita estridente
contra jornalista, manda calar
xinga, baba, perdigotos pelo ar
Macho que se exibe feito pavão
se vale do cargo e mostra ao povão
o ser raso, tosco e parvo que é
guincha mais alto contra mulher
Chihuahua que imagina ser um leão
no fundo a coragem lhe é ausente
covarde e sem nenhuma aptidão
só um boçal que virou presidente
Em cada esquina um coringa
Só mais uma vida desgraçada
Cansado da sorte que não vinga
espera pela próxima cartada
Contra a sociedade que o humilha
traz na manga sua última jogada
Sorriso histérico, a arma engatilha
agora quero ver quem dá risada
A gargalhada ecoa na cidade
e o terror domina a face pálida
O caos se espalha, brutalidade
é o fim de mais uma piada
penso o que tanta gente pensa
e quem pensa que assim não pensa
vê recompensa na diferença
e com indiferença
pensa que só ele pensa
crença de quem diz que pensa
porque dispensa o que o outro pensa
não repensa nenhuma sentença
propensa discussão à ofensa
tensa
nasce assim a doença
desavença
às vezes converso comigo
discuto eloquente grito
berro quase demente
convenço persigo
mas paro
escuto vejo
relevo respiro
melhor não fazer-me inimigo
é tanto ego que às vezes sinto
que sinto que fico um tanto cego
e não sigo o que sinto
mas sem sentir não consigo
então pressinto e nego
e o ego
renego
Tanta coisa em mim morreu
enterrei sem choro nem vela
sem oração na capela
sem velório, ninguém apareceu
Tanta coisa em mim morreu
que alimentou a terra
fez brotar a nora era
e algo novo floresceu
Tanta coisa em mim morreu
que no clarear do novo dia
aquilo que não parecia
sem demora aconteceu
Tanta coisa em mim morreu
tudo o que me sobrou
transformou esse que sou
e meu novo eu nasceu
O inconsciente furtou
um objeto
da estante
Sou grato
A noite sem cógnitos
é branda
talvez eu
até
durma
Se minhas guerras
sou eu quem as crio
por que não as venço?
Talvez porque as armas
da qual preciso
nunca as penso
Entrincheirado e atento
avanço mais uma linha
inimiga
que invento
Minha
guerra nunca terá
(um) fim