O animal morto
velado sobre a mesa
feito ao ritual do fogo
fatiado ao molho sangue
é servido à minha boca
Vegetais sem raízes
guisados na gordura
harmonizados ao vinho
ao som do violino
são servidos à minha boca
Enlatados e embutidos
sobras e restos que servem
à pressa do dia a dia
ao ritmo dos insossos
são servidos à minha boca
Flora, fauna, fábrica
e tudo que pode ser vida
ou servir à minha carne faminta
ainda que seja um desejo falso
podem ser triturados pela minha boca
A fome e a sede humana
já transcenderam o estado animal
e toda essa ânsia que não alimenta
nem corpo nem alma, caminha para o dia
em que seremos o prato principal
As maritacas, o bem-te-vi, o sabiá
a orquestra reunida
todos juntos a cantar
É tanta nota musical
em horário matinal
que o galo nem arrisca cacarejar
A platéia ainda na cama
aprecia o concerto
mais um tranquilo despertar
Cada gota que cai de chuva
tece a enxurrada que desce a rua
e forma o lençol d’água
onde a cidade afunda
São Paulo para toda
ninguém aqui mais anda
Fica o recado da natureza
mostrando quem é que manda
Sob o asfalto bruto
um fio de vida ainda existe
tratado como subproduto
o rio que ainda resiste
Límpida cai a chuva
na rua
e corre suja
ao rio invisível
Água viva
corrente ativa
um fio de vida
ainda possível
Nunca via graça na lua
E o eclipse
secular
alterna entre lua e sol
o que há de novo nisso?
O que me impressiona
é que ainda há quem veja
significado
era após era
nos movimentos repetitivos
dos astros
O ser humano é um cão uivando ao nada
O ser humano é um cão uivando a
A rosa agora muda
ante ao dedo em riste
descansa despetalada
Tristeza de quem assiste
Humano vilipêndio
em palavra pedra bruta
fez crescer o silêncio
no peso da lágrima purpura
O corpo sem casa, sem casca
de movimento lento...
E vida veloz!
O risco que deixa por onde passa:
brilho que fica pelo caminho
Num breve choro, se acaba
Sal lacrimal que a liquida
A lesma, de vida besta
consegue ser ela mesma
a rua ria do rio que ia
do curso que ele seguia
pois sabia não conseguiria
progredir conforme ela progredia
cobrir a Terra ela poderia
ser mais útil ela seria
servir sempre ela serviria
só crescer era o que fazia
e isso ela nunca pararia
até que percebeu um dia
que o rio é que da rua ria
porque parada ela não saía
e apesar de crescer à revelia
para nenhum lugar a via ia
quando entendeu a diferença que havia
a rua imponente que antes ria
parada no lugar pôs-se a chorar
porque diferente do rio que ia
seu curso seguia para algum lugar
e a rua que antes não via
viu que nunca encontraria
o mar
agora é tarde demais para desaguar
I
chuva de verão
casamento de espanhol
enclave de sol
II
chuva de verão
asfalto impermeável
a rã está morta
III
chuva de verão
a árvore cai morta
luz que se apaga
IV
chuva de verão
o ônibus lotado
vidro embaçado
V
chuva de verão
a gravata a forca
algodão molhado
VI
chuva de verão
batuque no telhado
chão de granizo
VII
chuva na estação
trem lento caramujo
todos verão
Sol
imponente Sol
arde, em riste
no céu a brilhar
Sol
impotente Sol
sempre triste
nunca verá o luar
Tietê quem
te viu não quer
te ver
à margem
sem ramagem
sem ramais
marginais nada
fluviais
no leito
sem porto
sem jeito
rio quase morto
na primeira cria
a nova trindade:
o novo pai
o novo filho
a nova mãe
de um ventre
a gestação de três nascimentos
do dom materno
o surgimento de novos mundos
a norma
deforma
de forma alguma
a gente se conforma
de alguma forma
a mente
reforma
e o olhar transforma
toma minha alma
Deus
meu querido assassino
a qualquer hora a morte
tua cúmplice
vem ocultar meu corpo
completar teu crime perfeito
quando o sol sobe
assim subindo
sob o céu o sabiá sabido
avisa num assovio
e voa assim sumindo
no arranha-céu sob o sol
o ser some
a esfera
esfria a fúria
da ex-fera
mais elegante
que o elefante
é o rinoceronte
que de fronte
não tromba
corpos celestes em orbita
giram gravitam colidem
a química aquece a matéria
que explode etérea num beijo
nossos astros se equilibram
e surge algo infinito
nasce mais um universo
eternamente em expansão
todos verão:
o galo não cantará
às duas manhãs
o lobo não uivará
às duas meias-noites
será que só eu é que sinto
que com o tempo brinco?
I
encontro no céu:
um sorriso na escuridão
uma luz no fim do infinito
tenho dito
a lua e vênus
aproveitemos
pois nunca mais nos veremos
II
encontro secular
ménage à trois
eu a lua e vênus
aproveitemos
pois nunca mais nos veremos
III
vênus sobre a lua
eu voyeur na rua
desse encontro desfrutemos
pois nunca mais nos veremos
IV
eu a lua e vênus
fenômeno que queremos
mas
nunca mais nos veremos
fenômeno ocorrido em 08/09/2013