Pedro antes de se levantar da cama de caixotes e espuma, ficava deitado de bruços para o ar, com a coberta até a altura do peito, passando a mão por entre os finos raios de sol, que entravam sem pedir licença, pelas frestas e orifícios do velho amianto. As vezes se virava para o lado e ficava contornado com o dedo o desenho de uma árvore que havia na madeira. Ficava ali... As vezes fazia isso emitindo algum som. Em dias de chuva era diferente, saltava rápido da cama, para desmonta-lá. Depois ficava parado num canto onde não pingasse. Quando a chuva era muito forte, além da ação de desmontagem, ficava num canto onde não pingasse tanto.
Numa manhã levantou-se mais cedo do que de costume. Sem querer, pisou numa bala que estava no chão, mas não deu bola. Havia combinado com um amigo de ir ao centro da cidade. Comeu o que tinha como café e saiu. Desceu rápido pela ladeira. O movimento dos chinelos levantava a poeira da rua batida e seca, deixando seus velozes pés com um tom avermelhado. Foi até o local marcado e esperou o colega, que logo chegou. Andaram mais um pouco até o ponto, sinalizaram para o coletivo, subiram. Apostaram uma pequena e disputada corrida, para ver quem passaria primeiro por baixo da catraca. Pedro perdeu. Os olhares passageiros e aversos admiravam a habilidade dos garotos – nossa, parecem ratos. Atravessaram o corredor de ombros encolhidos e atenções apreensivas, sentaram-se nos últimos bancos.
No centro da cidade iam sempre ao mesmo lugar. Encontravam outros garotos na praça, passavam o dia lá. Não tinham muito que fazer. Descontraíam-se quando alguém escorregava no lodo morto encruado no fundo do chafariz. Todos riam. O infeliz mergulhador emergia, cuspia a água densa, e sorria meio ao engasgo. Era uma festa.
Os saquinhos plásticos com a cola endurecida não os serviam mais. A fome dava sinal de vida – rir deve dá fome. Tinham a brincadeira já combinada. Um vinha correndo por um lado, trombava, e o outro, pelo lado oposto, passava e apanhava a bolsa: pronto, os roncos das barrigas estavam com as horas contadas. No boteco pediram algumas coxinhas que estavam adormecidas na estufa amarelada, e uma coca de litro. Depois compraram algumas fichas, jogaram horas na máquina de videogame. O comerciante detestava aquelas presenças molambentas. Bêbados, pedintes sujismundos, moleques, espantavam os bons fregueses – um dia essa matilha acaba e não sobrarão nem as pulgas.
A tarde caía morna. Voltaram para o bairro. Ao chegarem encontraram um pessoal parado na esquina de sempre. Juntaram-se a eles. Adoravam aquilo: ficavam ouvindo as histórias dos caras mais velhos, cheias de aventuras. Benê era o que mais falava. Seus gestos prendiam a atenção dos mais novos. As roupas, o brilhoso relógio, o nome na camisa – o bom é ser assim.
- E ai Pedrão, aquela parada lá, ta contigo né?
- Ta sim, ta sim. Ta moqueada.
- Firmeza! Depois eu pego lá.
- Opa, de boa Benê, ta na “responsa”.
Benê era um cara respeitado, todos gostavam dele. Uma vez foi parar na Febem, mas ficou pouco tempo. Fugiu com outros garotos durante uma rebelião. Agora estava mais ligeiro, não podia vacilar – se eu der bobeira me prendem, fico guardado uma cara. Fita agora é só a certa. Depois de muito papo, o pessoal dispersou, cada um seguiu seu caminho. Pedro foi para casa.
Subiu a ladeira escurecida pensativo. Chegou em casa, mas não havia ninguém ainda. Não havia nada. Sentou-se em silêncio, ainda pensativo. Enfiou a mão entre a madeira e o caixote com espumas, pela lateral da cama, e apanhou o embrulho que o amigo Benê pediu para que guardasse. Apoiou-o no colo, tirou de dentro um objeto preto-fosco, novo e frio. Tentou ler o que estava escrito no cano – C – O – L –T – 3 – 5 - 7 – não entendia o que significa aquilo, mas mesmo assim achava o nome bonito. Levantou-se e ficou apontando para um espelho velho, mirava na testa do reflexo embaçado – pá, pá, pá – fez com a boca. Sentiu-se poderoso. Estufou o peito e sorriu largo. Apanhou a bala suja do chão e abasteceu o tambor. Estava decidido, a casa que fitou dias atrás, no bairro próximo, seria hoje. Tirou do bolso um resto de dinheiro que sobrou da divertida tarde e colocou-o sobre o criado mudo, perto dum terço, junto a uma pequena caixinha de bijuterias. Ajeitou a cintura e saiu.
O plano estava na cabeça. Morava pouca gente na casa, e pelo que percebeu, não havia cachorro para dedurá-lo. Na maioria das vezes jantavam no mesmo horário. Seria fácil: renderia todos, pegaria dinheiro, outros objetos de valor e sairia. Rápido e limpo. Dificilmente seria pego – a culpa sempre cai na favela, e o primeiro que a polícia pegar vai segurar essa bronca – pensou.
Entrou caminhando, numa passada rápida e muda, pelo meio da rua onde ficava a casa. Passou uma vez pela frente, fitou por entre o portão, não viu nada de anormal, seguiu até o final da rua e voltou. Pular foi fácil, apoiou-se nas barras, subiu pelo muro, caiu como um gato no chão. Agachado, olhou pela janela da sala, que tinha uma fina cortina branca fechada. Tinha um vulto, alguém via TV. Havia uma porta ao lado, mas preferiu não entrar por lá, render um só seria perigoso. Arriscou a porta que dava acesso ao corredor lateral, e deu sorte, estava destrancada. Com o caminho livre, continuou com seu andar de pato. Havia alguém no banheiro. Pela pequena janela saia uma fumaça quente e úmida, misturada a luz. No cômodo seguinte, o rádio em volume baixo dizia algo, continuou seu caminho. Levantou vagarosamente a cabeça, olhou pela janela da cozinha, nada. No pequenino quintal do fundo, nada também. Era a deixa, vai ser agora.
Quando entrou pela porta, um pequeno amarronzado cão, de latido fino, veio com tudo em sua direção. Coitado. Com um chute certeiro, foi arremessado na parede. A pancada produziu um som oco. Caiu imóvel. Um homem avolumado levantou do sofá e veio correndo ver o que estava acontecendo - quem é você moleque? O que quer? Sai daqui ou – sem hesitar, sacou e esticou o braço – pá... pá. O primeiro pegou na barriga. O segundo no pescoço. O pesado corpo caiu, com os olhos estatelados, cuspindo sangue e produzindo um som de animal abatido morrendo. Pedro nunca tinha ouvido nada parecido. Uma mulher saiu do banheiro, de roupão e toalha na cabeça. Quando viu a cena, desesperou-se.
- Que é isso! Senhor do céu...
- Cala boca dona, e dá o dinheiro!
- Que você fez... meu marido....
- Vai, fala logo, cadê a porra da grana!
Ela, já sem nenhum controle, chorava de maneira histérica. Sem paciência, derrubou-a no chão, chutou-a na cara – cala boca! – não adiantou. Debruçou e puxou a toalha que protegia seus longos cabelos, olhou-a nos olhos, cobriu seu rosto alvo... pá. O belo corpo tépido silenciou. Começou a vasculhar a casa, que não era muito grande. Foi até um dos quartos e ouviu um soluço baixinho e ininterrupto, que vinha de trás da porta. O garoto em choque escondido era pura lágrima. Pegou-o pela gola do pijama e sacudiu-o – tem grana ai filho da puta – nada, nenhuma reação diferente, só pranto. Pedro empurrou-o contra a parede, encarou-o por um momento, olhou-o de cima a baixo, afastou-se um pouco – pá. Empurrou a porta de volta. Apanhou todo o dinheiro que encontrou e, junto com outros objetos que acreditava ter valor, colou dentro duma mochila. A ação estava no fim, era hora de ir. Mas antes, lavou o rosto na pia, tirou a surrada roupa e vestiu um abrigo escolar azul escuro, que estava no quarto. O par de tênis também. Viu que as chaves da casa estavam na fechadura da sala. Abriu a porta, testou as chaves no portão, pôs a mochila nas costas, estava terminado.
Saiu pela rua vazia, na calma noite de junho. Chegando na esquina, algo lhe chamou a atenção. Um enxame de luzes quentes em movimento, vinha em sua direção, ficou observando. Olhou admirado para a enfeitada imagem de barro, tingida colorida, que passou na sua frente, e o enorme número de gente que a seguia. Entrou por entre as pessoas, misturando-se as devotas carolas.
- Oi anjinho, tudo bem.
- Oi.
- Ainda de uniforme? – Pedro apenas olhou de volta.
- Não está rezando? Com quem você veio?
Quieto, saiu de lado e caminhou próximo a procissão, pela beira da rua. A senhora de véu acompanhou o menino com o olhar, mas logo voltou sua atenção ao culto e prosseguiu a reza. Pedro virou na primeira esquina, foi embora. O enorme cortejo continuou seu caminho pelo bairro, seguindo seu mártir. Os lamentos continuaram sendo murmurados. Os fiéis com os corações vibrantes e cheios de fé seguiram seu destino, felizes, pois sabem que todos estão seguros, amparados pela tutela de Deus.
Pra ouvir download:
Ira! - Rubro Zorro (do álbum Psicoacústica 1988)
Pra ver:
Video Clip: Ira! - Rubro Zorro - Baseado no filme "O bandido da luz vermelha" (Brasil, 1968) - Direção de Rogério Sganzerla