É engraçado como não esqueci, mas ao mesmo tempo esqueci uma paixão antiga que tive. O que chamamos de primeiro amor então, nunca saiu da lembrança, mas também não ficou para a vida. Em algum lugar do saudosismo, esses sentimentos, muitos deles juvenis, habitam e só são solicitados hoje em rodas amigas de bate-papo “das antiga”, ou às vezes aparecem em momentos de solidão fazendo papel de anti-heróis; vêm e me dão um sorriso que ponho cara de imediato, talvez uma lágrima no canto do olho brilhoso o acompanhe, e uma sensação de ternura ocupa e repousa no corpo nesse momento, mas depois acaba o revival e a lembrança volta para o arquivo semi-morto da mente e meu corpo volta a ser a carne humana que sou, ou que me transformei.
Revirando as bagunças que guardo na parte alta do guarda-roupa - parece até uma representação física da memória: a parte alta do guarda roupa – encontrei a caixa que embalou meu primeiro par de sapatos de couro preto, praticamente marco início da minha vida adulta. Hoje essa mesma caixa, toda remendada e sem muito de sua cor original, guarda uma porção de papeis que nem sei se valem algo ou se servem para alguma coisa, alguns documentos amarelados e fotos de uma época que só a saudade é capaz de lembrar.
É impossível não sorrir diante das fotos da turma: gente que tinha mais apelidos do que nomes, vontades do que dinheiro e um tipo de alegria que só se tem quando se é novo. Festas, festas, festas e mais festinhas, tudo era motivo para festa. E foi numa dessas, na de quinze anos da Juliana, que tirei este retrato: eu de braço dado à princesa da festa, e meu amigo Jorge, conhecido também como “cabeção”, com a princesa que eu queria ter. Nós quatro, lado a lado, formando casais que não me interessavam.
Eu era apaixonado pela Mara. Nada era mais divino do que vê-la dançando naquela noite: tudo se rendia aos seus pés bailarinos, cadenciados harmoniosos por Richard Strauss, a coadjuvante lua jogava luz sobre a pele sedosa do seu vestido que refletia paz e iluminava a pobreza dos olhos murchos de embriaguez que lhe cercavam e que se encantavam com seu sorriso singelo alvo ornado vermelho amor, e os movimentos de suas mãos de Fada levemente adocicavam o duro ar e deixava tudo que não era Ela desbotado. O ambiente virou um relicário de bijuterias tendo Ela como a única jóia de valor; pérola de pétala púrpura e pura. Eu observava, rodopiando desajeitado com minha pseudo-protagonista, toda essa sinfonia da natureza que acontecia como encanto, um presente divino para um bando de mortais que insistiam em viver. Foi assim, eu admirando-a, durante a valsa e pelo resto da noite, até que no final ela saiu com seu par, e eu, a par de tudo, nem aí para o meu par. Não comi um doce dessa festa.
Não sei o que impedia de declarar minha paixão à Mara. Quando a via sentia até dor-de-barriga; sentia minhas vísceras retorcendo, o coração disparava, a mão suava e eu me acovardava. Era muito forte. Amor e medo, juntos. Não éramos amigos próximos e não contei aos meus amigos sobre o que sentia por ela. Tínhamos muitas amizades em comum, e meu medo era que a notícia da minha paixão corresse pelas bocas mundo afora. Guardei segredo. Depois ela começou a namorar e passei a guardar esse segredo até de mim mesmo. Se não era para tê-la, preferia nem vê-la, nem lembrá-la, nem nada... Passou alguns meses e fiquei sabendo que se mudou.
Essa paixão me perseguiu durante algum tempo. Lembro do dia em que eu o Duda e o Xisto decidimos acabar com nossa “invencibilidade”. Fomos ao Ninfa’s American Bar, que ficava na “boca-do-lixo”, atrás de prazer e vida nova. Entramos e ficamos numa mesa quadrada, pedimos cerveja e observamos as garotas de topless que dançavam num palco retangular comprido de uns sessenta centímetros de altura. Na vitrina da carne, que encantava nossos jovenis olhares, enxerguei uma que se não era parecida, fez-se igual à Mara: branquinha, dorso de sardas, gotas de chocolate, longos e negros cabelos que emolduravam um rosto simétrico, curvas feitas para se perder. Negociei o programa e fomos. Imaginei minha musa durante todo o ato. Em um momento, eu vidrado na menina sussurrei em seu ouvido - te amo... – e fui para beijá-la, mas ela desviou e seguiu em seu papel mecânico e acabamos. Depois fomos embora e nunca mais voltei lá e nem em local parecido.
Na última reunião de pais e mestres no colégio em que minha filha do meio estuda, tive uma surpresa: uma mulher veio até mim, me chamou pelo nome, olhei-a como quem olha normal para alguém, cumprimentei-a e conversamos; era Mara. Não tive nenhuma reação de surpresa, só educação. Perguntou-me se não lembrava dela, respondi que um pouco, falei sobre Jorge e ela confirmou que foi namorada dele, até que se mudou para outra cidade. Disse que se casou com um de lá, tem três filhos e voltou para morar na casa que seus pais deixaram de herança, e também porque para seu marido as oportunidades de trabalho eram melhores por aqui. Veio à reunião de seu filho caçula, que por coincidência estuda junto com minha filha. Falamos mais um pouco e nos despedimos.
Aquela mãe de aluno não era a Mara. Não poderia ser. Não havia um traço que lembrasse aquela menina da adolescência. Mesmo depois de conversarmos, não era ela. Se fosse, estava soterrada sob aquele corpo pálido gotejado de ferrugem... estava sob a tintura opaca dos cabelos não tão longos e das roupas de senhora que não sonha com amor, estava sob a dissimetria do resto. O tempo matou Mara. Foi a única vez que conversamos e não enxerguei a menina que me encantava em canto algum das palavras, dos gestos ou de qualquer outra coisa que aquela mulher expressava. Mara é a menina do retrato. A menina da festa de quinze anos, dos pés bailarinos, jóia única do relicário e da lembrança que achei ter esquecido:
- Pai, o senhor achou?
- Ah, sim. Está no fundo do guarda-roupa, vou pegá-lo.
Ele guardou a foto na caixa com outras, levantou da cama onde estava sentado e pegou no guarda-roupa um brinquedo antigo: um carrinho ambulância que havia sido seu e que guardou para dar ao seu filho, quando tivesse uma idade em que saberia que ele teria cuidado com o presente. Entregou ao menino, que correu para mostrar à mãe:
- Eba! Olha mãe...
Olhou feliz o menino correndo pelo corredor, e o eco da alegria infantil o fez sorrir e brilhar os olhos. Depois voltou e guardou a caixa no fundo da parte alta do guarda-roupa. Fechou a porta. Foi atrás do menino, queria ser o primeiro a ser socorrido pela ambulância do seu filho.